O pior de ter pé chato é usar aquelas botas. Botinhas pretas. Quando eu era criança eu olhava com horror para aqueles sapatos. Pior que as botas eram as aulas de balé: para correção das pernas e dos pés. Muito pior , pior mesmo , eram as sapatilhas.
Tão bonitinhas de se ver, mas nos meus pés , tornavam-se instrumentos de tortura.
Eu sabia que não tinha jeito para dança e muito menos para balé clássico.
Minha mãe achou que eu seria a primeira bailarina da companhia.
E eu preferia pegar jacaré na praia, correr na rua com a meninada e subir em árvore.
Enquanto as meninas faziam os exercícios na barra de forma harmonica , eu parecia um elefante vestida de rosa. Não gostava do que eu via no espelho. Braços para um lado, pernas para outro.
Não tinha noção de ritmo e a música era enfadonha.
Eu amava o ie-ie-ei, que chegava com força total.
O suplício começava na hora de fazer as botas pretas. O senhor que fazia o sapato era um francês, pequenino e com os cabelos brancos empinados prá cima.
Naquele calor horrível da praia , ele sempre estava de terno cinza claro
Ele também vendia as tais sapatilhas.Era um especialista em pés.
Dava a impressão que tinha saído de uma gravura que ele tinha no seu escritório, um salão de dança , com bailarinas de can-can.
O quadro até que era bonito. Toulouse-Lautrec, dizia o velhote.
Ele media meus pés tortos com uma careta e uma caneta.
Um dia, perguntei para ele se pé torto era uma doença grave.
Ele olhou fixamente para mim e riu :
- Seus pezinhos vão endireitar com exercícios , e batia delicadamente na minha perna.Você apenas precisa ter paciência. Um dia seus pés ficarão bons.
Eu duvidava desse diagnóstico e achava uma bobagem ir em médico para tratar
de pé chato. Humilhante.
O velhote sempre perguntava para minha mãe como eu estava no balé.
Minha mãe dizia que eu embirrava toda vez que chegava a hora das aulas.
Um dia ele peguntou para mim o que eu mais gostava de fazer.
Eu respondi de pronto:
-" Ir na praia e pegar jacaré."
O velhote espantado deu uma risadinha e declarou:
- "Minha senhora, tire essa menina do balé e ponha na natação.
Ela gosta de nadar."

Alguns dias depois, livre do balé, da sapatilhas, da roupinha cor de rosa ridícula e das botas,
meus pés começaram a criar uma membrana, como
seu eu fosse um robalo gigante.
Pés de pato, igual a dos mergulhadores.
Não fiquei envergonhada.
Nada disso, fui para a praia toda orgulhosa e mergulhei.
A água estava boa e o mar sem muita correnteza. Nadei muito fácil e cheguei até o farol,
na entrada da Barra. Daí , sem olhar para trás, com a orla da praia ao longe,
tomei fôlego e segui nadando junto com os botos.
Eles me olhavam nos olhos e a cada braçada era engolida pelo oceano
e fazia parte daquela natureza.
Os botos me ajudaram a nadar para longe da arrebentação.
E segui adiante, sem medo.

O velhote que fazia as botinhas era o homem mais sábio do mundo.
Um mágico,talvez.
E eu, era um peixe disfarçado de menina.




* Rune Johnsson photo







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| Por Prensada | quinta-feira, 4 de junho de 2009 | 23:27.