O filme do diretor Fernando Meirelles , Ensaios sobre a Cegueira, é o hit do momento. Já tinha lido alguns comentários superficiais , mas preferi assití-lo antes das críticas. Estava apreensiva com o resultado da transposição do livro do escritor português José Saramago para o cinema. Quem já leu Saramago sabe do que estou falando. Imaginei impossível a tarefa. Mas Meirelles mergulhou fundo no mundo de Saramago, aquele universo tão particular, intenso , dolorido e profundo.
Senti o filme como uma parábola religiosa. Lembrei particularmente de uma passagem bíblica, de Paulo de Tarso , implacável perseguidor dos cristãos está na estrada de Damasco e ouve uma voz e chega uma luz intensa. Cego pela luminosidade cai por terra. E não vê mais nada. Ouve uma voz: " Saulo, Saulo , porque me persegues ? ". Levado por um peregrino à Damasco, recupera a visão dias depois e converte-se ao cristianismo. Torna-se o propagador principal da boa nova do Mestre que caminhou no deserto.
A cegueira branca atinge a população e a epidemia faz com que as autoridades promovam um isolamento forçado dos cegos. No sanatório, tentam se organizar em alas e a princípio tudo parece que vai entrar nos eixos. Mas como a epidemia toma proporções gigantescas , a população do hospício triplica. E aí começa o inferno. Os personagens começam a fazer o percurso da desumanização. Passam a se mover pelo instinto de sobrevivência e suas vidas se resumem a comer, defecar e transar. Não é preciso mais que alguns seres humanos juntos para ver aflorar todo o lado sórdido do homem. No confinamento da quarentena-presídio , surge toda a degradação humana: o crime organizado, a corrupção, a violência desmedida, o machismo, o racismo, a ganância , o crime pelo poder e a guerra. Sim , os cegos declaram guerra a outros cegos.
Toda a miséria humana e o simbolismo de Saramago. A mulher do oftalmologista é a única que não é atingida pela cegueira. Ela será a guia e a luz no presídio dos cegos.
Em terra de cegos quem tem um olho é rei...
Tudo é muito sensorial e existe um requinte visual extremo. Há obsessivos planos-detalhes e não há como não ficar imune aquela luz branca intensa que atinge toda hora o espectador. Excesso de luz que cega. A cenografia , a direção de arte e o desempenho dos atores tudo parece milimetricamente estudado. Com destaque para Julianne Moore , Danny Glover e Gael Garcia Bernal ( o grande vilão ) . Até Mark Rufallo ( o médico oftalmo ) está muito bem. Seu rosto suave compõe com perfeição a personalidade do médico atormentado e ético.
Meirelles presta homenagem à pintura ao reproduzir imagem de quadros que de certa forma compõem o imaginário humano. São referências a Francis Bacon, Hieronymus Bosch, Lucien Freud, Bruegel. Eu detectei dois momentos de pintores. Outros passaram batidos...porque eu estava muito aflita na minha poltrona.
As constantes fusões de branco, fade-ins e fade-outs e Juliane Moore esplendorosamente humana. Cenas externas de um mundo destruído pela desumanidade ( com a cidade de São Paulo eficiente em mostrar esse caos ).
Meirelles transpôs todas as nojeiras humanas para a tela. Como Saramago quis. Tem a cena de estupro coletivo mais horripilante que já vi no cinema. E um final cartático, lindo e humano. Uma ceia simples , a lareira , o conforto da amizade e do amor. E daí vem o milagre, a luz que cega é aquela que faz ver.
O filme é um tiro certeiro no peito: uma foto aterradora do mundo globalizado que vivemos. O apocalipse dos cegos.
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